Por Gabriela Toso
Todo estudante de Direito passa – ou deveria – pela compreensão dos três poderes, sua relevância na manutenção de um Estado Democrático de Direito e o papel do Judiciário em garantir o cumprimento das leis. Desse todo, uma parte significativa também vai passar pela desilução ao ver que, na prática, o Judiciário está longe de garantir que todas as pessoas tenham acesso aos seus direitos ou até mesmo à Justiça.
Isso não quer dizer que o Judiciário seja obsoleto: só que, num país desigual – em gênero, raça, classe e outros tantos marcadores – e conectado a estruturas socio-econômicas globais também desiguais, esperar do Judiciário que, sozinho, garanta a proteção dos Direitos das mulheres é um tanto utópico.
Tampouco isso quer dizer que o judiciário não tenha um papel importante a ser exercido – e é sobre sua função na proteção das mulheres que falaremos nesse artigo. O Direito das Mulheres é pauta de luta há, pelo menos, um século, e o fato de o artigo 5º, I, da CF/88 prever que todos são iguais perante a Lei é em si uma vitória. As legislações – anteriores e posteriores à nossa Constituição – que garantiram às mulheres maior proteção jurídica foram avanços importantes, permitindo às mulheres brasileiras instrumentos de luta por reparações que não são garantidas em outros países.
Nesse sentido, nosso maior destaque é talvez a Lei Maria da Penha, que ainda em 2010 foi reconhecida como a terceira melhor legislação global de proteção às mulheres pelo antigo Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher e que, desde então, segue sendo aprimorada, com a inclusão da violência psicológica como marco importante dessa evolução.
Seguindo esse bom exemplo, ainda temos as conquistas representadas na forma da Lei do Feminicídio, do Estatuto da Mulher, da Lei Mariana Ferrer e do Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero. Essas legislações podem demonstrar que existe uma resposta institucional do Legislativo e do Judiciário no sentido de que os Direitos das Mulheres devem ser protegidos pelo Estado.
No entanto, mesmo com todas essas conquistas, os dados de desigualdade de gênero no Brasil – e, por consequência, do acesso das mulheres aos seus direitos – são abissais. No ranking de 2023/2024 do Relatório de Mulheres, Paz e Segurança, o Brasil apareceu na 115ª posição – uma queda da avaliação de 2022, onde aparecíamos na já ruim posição de 80º lugar. Em relação ao feminicídio, os dados mostram que crescemos em número – atualmente, uma mulher morre a cada 6 horas nos país em razão de ser mulher, 68% das mulheres conhecem uma mulher que já foi vítima de violência doméstica, e hoje há uma subnotificação de 61% em relação à esses crimes, de acordo com dados do DataSenado.
Ainda, de forma similar à violência doméstica, o Brasil cresceu de posição em ranking que avalia as medidas legais de combate à exploração de crianças – que, estatisticamente, são em maioria de meninas. O país chegou a receber pontuação máxima nas avaliações de medidas tomadas pelo judiciário no enfrentamento ao problema, obtendo também um valor relativamente alto em relação às legislações e práticas jurídicas de igualdade de gênero. No entanto, de forma quase contra-intuitiva, um relatório da OMS demonstrou que a exploração sexual de meninas no Brasil atinge números tão grandes quanto 320 crianças e adolescentes explorados a cada 24 horas, com apenas 70% dos casos sendo notificados e com 75% das vitimas sendo do sexo feminino e, em maioria, negras.
A contradição de termos boas leis, um judiciário estruturado – e bem financiado -, ainda que sobrecarregado, e ao mesmo tempo números gigantesco de violência contra mulheres e meninas sugere que as medidas tomadas ainda não são eficazes na proteção de mulheres. E isso, por sua vez, pode ser explicado pelo fato de que a desigualdade de gênero é cultural, histórica, e amparada e legitimada por elementos midiáticos e perfis online. O desafio de proteger os Direitos das Mulheres é complexo e, como tal, exige soluções múltiplas – das quais o judiciário é parte importante.
O Poder Judiciário está, em relação aos outros poderes e instituições, em posição privilegiada de protagonismo nessa questão: isso em razão de seus recursos financeiros, da alta instrução de seus representantes, da estabilidade garantida a boa parte de seus funcionários, da própria função do Poder de garantidor da implementação da legislação, entre outros.
Embora uma pesquisa da Agência Patrícia Galvão de 2016 tenha identificado que a maioria dos cidadãos brasileiros acreditem que a impunidade é a principal razão para os altos índices de violência contra mulheres no país, pesquisas demonstram que ações para além das punitivas são a chave para o enfrentamento ao problema. Nesse sentido, o enfrentamento à impunidade e capacitações dos servidores do Poder Judiciário em relação às desigualdades de gênero são parte importante da solução.
No entanto, embora avanços como o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero sejam avanços importantes, eles ainda parecem, para as cidadãs, o mínimo. Essas atividades precisam estar combinadas à ações educativas, como a expansão do programa Justiça nas Escolas – e a inclusão de pautas de desigualdade de gênero em seu currículo -, que trazem potencial de prevenção ao problema, e educação das meninas e mulheres quanto aos seus direitos, e ajudam a atacar a parte do problema que é relacionada à naturalização das violências contra mulheres.
Em suma, o Poder Judiciário é essencial para a proteção dos Direitos das Mulheres, e sua atuação não pode se resumir à punição – principalmente dado que o problema é multifatorial – e nem a capacitar seus servidores para evitar a revitimização de mulheres que já tiveram seus direitos feridos. Nesse sentido, conclui-se que o Judiciário possui os recursos para atuar de forma a contribuir com a prevenção do problema, e que essa atuação é essencial para um país que trate suas mulheres como cidadãs com acesso pleno aos seus direitos constitucionais.
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- https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/politicas-para-mulheres/arquivo/area-imprensa/ultimas_noticias/2009/04/not_rel_glo_do_unifem_apo_lei_mar_pen_ent_tre_mai_ava_mun
- https://giwps.georgetown.edu/wp-content/uploads/2023/10/WPS-Index-full-report.pdf
- https://www1.folha.uol.com.br/folha-social-mais/2023/05/brasil-sobe-em-ranking-de-combate-a-violencia-sexual-contra-criancas-mas-peca-na-prevencao.shtml | https://outoftheshadows.global/
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